Um Romance Existencialista: A Hora da Estrela
- 3 de jul. de 2024
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Sempre me identifiquei com a persona de Clarice, seu desejo ardente pelo mundo contrastando a um profundo vazio interior, sua capacidade de amar e odiar com igual intensidade, sua expansividade aliada a uma introspecção terrível, denotando assim a complexidade de sua feminilidade.
E "A Hora da Estrela", obra publicada em 1977 pouco antes da morte de Lispector, é um mergulho profundo na essência da existência humana através da vida de sua protagonista, Macabéa. O romance não se limita a uma narrativa introspectiva; ele transcende ao explorar questões fundamentais de identidade, alienação, solidão e efemeridade da vida. Clarice Lispector escolhe deliberadamente uma protagonista aparentemente comum, uma jovem nordestina pobre e sem atrativos, para desvelar aspectos universais da condição humana.
No centro do enredo está Macabéa, cuja vida simples no Rio de Janeiro serve como pano de fundo para uma exploração profunda das vicissitudes existenciais. O narrador-personagem, o escritor Rodrigo S.M., desempenha um papel crucial na estrutura narrativa ao não apenas relatar, mas também interpretar e questionar o destino de Macabéa. Essa dualidade narrativa não apenas enriquece a profundidade psicológica da obra, mas também oferece uma reflexão intensa sobre o significado da vida e das escolhas individuais.
Rodrigo, um alter ego fictício de Lispector, utiliza sua voz para não apenas dar voz à Macabéa, mas também para explorar suas próprias inquietações e angústias existenciais. Assim, através das reflexões entrelaçadas entre narrador e protagonista, Clarice Lispector tece uma narrativa que transcende a mera descrição de eventos, oferecendo uma meditação profunda sobre a humanidade e suas complexidades.
A escolha de Clarice Lispector de utilizar um narrador tão intimamente ligado à história permite que "A Hora da Estrela" transcenda a simples observação objetiva para se tornar uma exploração profunda da alma humana e das contradições sociais. O romance não se limita a retratar a vida de uma moça pária; ele também medita sobre a natureza da narrativa e da empatia. Lispector desafia convenções literárias ao permitir que o narrador se torne um participante ativo na história, questionando o papel do escritor e a responsabilidade moral de contar as histórias alheias.
Explorando temas existenciais profundos como solidão, alienação, identidade pessoal e mortalidade, "A Hora da Estrela" apresenta Macabéa como uma figura marginalizada cuja vida simples e quase invisível contrasta com a intensidade das questões que permeiam sua existência. A solidão é um tema central que permeia toda a narrativa; Macabéa vive em um estado de isolamento emocional e social, sem conexões significativas com outras pessoas. Sua solidão é exacerbada pela falta de afeto e pela indiferença dos que a cercam, tornando-a uma figura solitária mesmo em meio à multidão da cidade grande.
A alienação de Macabéa também é explorada profundamente. Sentindo-se estrangeira em sua própria vida, uma nordestina perdida no meio urbano do Rio de Janeiro, ela está distante de sua terra natal e de suas raízes culturais. A pobreza e a falta de recursos amplificam sua alienação, colocando-a à margem de uma sociedade que valoriza o consumo e o sucesso material.
A identidade pessoal de Macabéa é outro ponto crucial. Desprovida de atrativos e vivendo uma existência desprovida de grandes ambições, ela enfrenta uma jornada interna para descobrir quem realmente é, em um mundo que parece determinado a ignorá-la. Nesse contexto, as reflexões filosóficas do narrador não apenas buscam compreender Macabéa, mas também exploram o significado mais amplo da vida e da condição humana, desafiando o leitor a refletir sobre suas próprias conexões com o mundo ao seu redor.
"A Hora da Estrela" de Clarice Lispector é permeado por reflexões profundas sobre temas como solidão, alienação, identidade pessoal e mortalidade, refletidos tanto na narrativa de Macabéa quanto nas introspecções do narrador, Rodrigo S.M. A solidão de Macabéa é tangível ao longo da obra, como quando o narrador descreve: "Ela era tão frágil que não tinha sequer um caráter sólido. Era um amontoado de vazios." Essa imagem não apenas ressalta sua fragilidade física, mas também sua ausência de conexões emocionais significativas, deixando-a isolada em sua própria existência.
A alienação de Macabéa é aprofundada em passagens que revelam sua estranheza em relação ao ambiente urbano e à cultura da cidade: "Macabéa não entendia nada daquilo. Achava que não tinha importância, era como se assistisse a um filme para o qual não tinha sido convidada." Esse sentimento de alienação acentua sua sensação de estar fora de lugar, perdida em um cenário que lhe é estranho e hostil.
A busca de Macabéa por uma identidade pessoal é refletida em sua tentativa de compreender a própria vida, como quando o narrador pondera: "Por que, meu Deus, por que — pergunto eu — por que não nasci rica ou pelo menos bonita? Ou ainda pelo menos gostar de chocolate que é uma coisa que toda gente gosta e que não faz mal a ninguém." Essa reflexão revela sua luta interna para encontrar um lugar de pertencimento em um mundo que parece indiferente aos seus anseios mais simples.
Finalmente, a mortalidade é um tema que permeia toda a narrativa. A fragilidade da vida de Macabéa é constantemente lembrada, especialmente quando confrontada com a doença e a proximidade da morte. Essa consciência da mortalidade não apenas amplifica sua solidão e alienação, mas também intensifica suas reflexões sobre o sentido da vida e sobre o que significa existir verdadeiramente.
A mortalidade se torna uma presença constante na narrativa, especialmente quando Macabéa enfrenta a doença e a proximidade da morte. O narrador observa: 'Se Macabéa não pensasse, talvez não morresse. Mas a liberdade é tão bela que se tem de morrer por ela.' Essa reflexão encapsula não apenas a fragilidade física de Macabéa, mas também sua busca pela liberdade e pelo significado em face da inevitabilidade da morte. Portanto, através desses trechos e das reflexões entrelaçadas de Clarice Lispector, "A Hora da Estrela" revela-se não apenas como um retrato da vida de uma jovem proscrita, mas também como uma meditação profunda sobre a condição humana e os dilemas universais que confrontamos ao buscarmos nossa própria existência e significado.
Clarice Lispector utiliza uma prosa poética e introspectiva para explorar os pensamentos e as emoções de seus personagens. A linguagem é marcada por sua profundidade psicológica e pela capacidade de capturar nuances da experiência humana com uma precisão poética única. Cada palavra parece carregada de significado, contribuindo para a construção de uma atmosfera melancólica e contemplativa ao longo da narrativa. E essa característica poética não apenas enriquece a narrativa de forma estética, mas também permite uma exploração profunda dos dilemas existenciais e das complexidades emocionais enfrentadas pelos personagens de Lispector. Sua habilidade de penetrar nas camadas mais íntimas da psique humana parecia ser dom.
No mundo há poucos tesouros como a riqueza poética e filosófica de "A Hora da Estrela", que habilmente combina introspecção profunda com uma linguagem poética intensa - principalmente nos versos "Lágrimas no rosto lhe davam o rosto de um desenho barato e úmido. Ela não sabia que a raridade de eu não achar que o desenho da vida seja um desenho barato. Se fosse bonito, teria sido menos só.";"Agora me escondo atrás das palavras. Mas estou farto de semelhantes armadilhas e de ilusões, estou farto de pertencer a mim de modo tão dividido e de estar sempre à minha frente como se eu estivesse sempre errado.";"Então a bebedeira dele é igual à minha loucura? Não, porque a bebedeira dele é visível e a minha loucura é invisível. Ele grita e a minha loucura não grita, mas é em mim que ela mora.";"Vivo em uma zona perigosa, não é o perigo de ser presa. É a zona do coração. A terra é o lugar. É por isso que nunca pertenci a lugar nenhum."; "Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro."; "Ela não sabia que se abria para o mundo, mas se abria como uma flor para o sol, e que na verdade já se havia aberto há muito tempo."; "Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida."; "Aprendi então que se pode matar a fome com pão e também com sonhos, e que, entre os dois, o melhor é sonhar."; "A pior orfandade é não saber-se quem se é. Nesse sentido, não tenho pai nem mãe.";"Escrever é tão solitário como o próprio ser, eu sou o único que pode me entender e compreender o que escrevo. Só se conhece a própria solidão.";"Ela não sabia que para trás do pensamento há outra coisa que pensa."
Para além da reflexão sobre a existência individual, "A Hora da Estrela" também lança luz sobre questões sociais e econômicas do Brasil da época, especialmente através da representação de personagens marginalizados e das desigualdades sociais que permeiam a vida de Macabéa. O romance não apenas narra a vida simples e quase invisível de Macabéa, mas destrincha profundamente (se é que isto não é redundância) sobre as complexidades da solidão, da alienação, da busca por identidade e da inevitabilidade da mortalidade. Revelando então a beleza e a tristeza de existir à margem, no eterno desafio de encontrar significado em meio à efemeridade da vida.
E é por meio desta interação entre a história de Macabéa e as reflexões filosóficas do narrador, que "A Hora da Estrela" se revela não apenas como um retrato poético da vida de uma jovem marginalizada, mas como um romance, um romance existencialista, assim como fora Clarice.
Por Helida Faria Lima