O Neoclássico, o Modernismo e o Ressurgimento da Hispanidade: A Reconquista Espiritual da Língua após 1898
- 18 de jul.
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A história da língua, como a da alma, é marcada por fraturas, súbitas vertigens, por uma constante tensão entre ruína e renascimento. No seio do mundo hispânico, essa tensão atingiu uma culminância simbólica e dolorosa com o chamado "desastre de 1898", quando a Espanha perdeu suas últimas colônias ultramarinas — Cuba, Porto Rico, Filipinas e Guam — nas mãos de uma nascente potência imperial, os Estados Unidos. Essa derrota não representava apenas o colapso de um império territorial, mas o esgotamento de uma cosmovisão, de uma presença no mundo fundada na unidade da fé, da monarquia e da língua. A língua espanhola, esse tecido espesso de séculos, de batalhas, de conversões, de cruzamentos culturais, viu-se, então, convocada a um labor de reconstrução, de reencontro consigo mesma. É nesse cenário de perda, de agonia e de busca por uma nova dignidade que emerge a tríade luminosa: Rubén Darío, Miguel de Unamuno e José Ortega y Gasset — vozes que, à sua maneira, operam uma espécie de “ressurreição barroca”, uma modernidade impregnada de memória, e que rearticulam o sentido da Hispanidade não como nostalgia imperial, mas como vocação espiritual.
Rubén Darío, o grande cantor nicaraguense do modernismo hispano-americano, é talvez o primeiro a pressentir que a renovação da língua não viria da política, mas do ritmo, da imagem, do encantamento verbal. Em Azul… (1888) e Prosas Profanas (1896), ele não se propõe a redimir a Espanha com espadas, mas com sinestesias. Darío compreende, como os mestres da poesia francesa simbolista que tanto o influenciaram, que a linguagem pode ser uma forma de insurreição contra o tempo histórico — uma forma de “viver ao lado”, de criar beleza quando o mundo se desmorona. Porém, longe de um esteticismo vazio, sua obra carrega uma paixão secreta pela unidade espiritual da cultura hispânica. Em Cantos de Vida y Esperanza (1905), ao evocar figuras como Bolívar e Sarmiento, mas também Cristo e o Quixote, Darío transcende a oposição entre Europa e América e propõe um campo poético comum — uma latinidade renovada, onde o idioma espanhol é o sangue vital que une as margens atlânticas. Ao mesmo tempo neoclássico na sua adoração por formas e mitos greco-latinos, e moderno em sua ânsia de experimentação e introspecção, Rubén Darío encarna uma duplicidade hispânica: a beleza solar do Império e o lamento sombrio da sua queda.
Já Miguel de Unamuno, basco irredutível e trágico, recusa a fuga poética e lança-se à agonia da identidade espanhola com uma faca dialética nas mãos. Se Darío canta, Unamuno interroga. A Espanha que ele vê após 1898 é uma Espanha ferida de morte, mas também possuída de uma possibilidade nova: a de renascer por meio de uma filosofia da alma, da “intrahistória”. Para Unamuno, a solução não está nos modelos científicos nem nos sistemas políticos importados, mas na revalorização da alma castelhana, na redescoberta do povo como portador de uma sabedoria trágica e salvífica. Em obras como Del sentimiento trágico de la vida (1913) e En torno al casticismo (1895), Unamuno propõe um retorno à substância espiritual da Espanha — um retorno ao Quixote não como personagem literário, mas como símbolo nacional e existencial. O cavaleiro da triste figura, que luta contra moinhos e fala com fantasmas, torna-se, em suas mãos, o modelo da esperança hispânica: a persistência do espírito diante do absurdo, a fidelidade a uma missão que o mundo não compreende. Unamuno é, por excelência, o pensador da Hispanidade ferida, mas não vencida; ele é o intérprete da dor como matéria de renascimento.
Se Darío representa a renovação estética e Unamuno a busca existencial, José Ortega y Gasset oferece a terceira coluna desse novo templo da língua: a reflexão filosófica e histórica. Com La rebelión de las masas (1930), Ortega não apenas diagnostica o vazio espiritual da modernidade europeia, mas propõe à Espanha uma tarefa de reintegração no concerto das culturas universais, sem que isso implique abdicar da sua originalidade. Para Ortega, a Hispanidade não é uma nostalgia do passado, mas um projeto de futuro: trata-se de repensar a missão civilizatória da língua espanhola, não mais como instrumento de dominação, mas como veículo de pensamento, de estilo, de convivência. O espanhol, para ele, não é apenas um idioma — é uma maneira de ver o mundo, uma forma de pensar com sabor, com forma, com sobriedade barroca e claridade clássica. Ele reconhece que o idioma, ao carregar as cicatrizes do império, também carrega as possibilidades da comunhão entre povos diversos. É nesse ponto que Ortega e Darío se encontram: ambos vislumbram uma Hispanidade não como poder, mas como gesto; não como sistema, mas como arte de viver, de dizer e de compreender.
O neoclassicismo, em sua última encarnação moderna, fornece à língua espanhola as colunas de um templo que resiste ao colapso: formas rítmicas, mitos eternos, beleza estrutural. O modernismo, com sua ânsia de experimentação, de subjetividade, de cosmopolitismo, injeta à mesma língua uma nova seiva — Paris, Viena, Nova York começam a circular no castelhano como outrora circularam Roma e Jerusalém. Mas o que se afirma, sobretudo, é a Hispanidade como uma “terceira via” entre o desencanto moderno e a tradição esquecida. A língua se torna o lugar dessa reconciliação. Nas mãos de Darío, é música e ouro. Nas mãos de Unamuno, é carne e sangue. Nas mãos de Ortega, é cristal e ideia.
A derrota de 1898, então, não marca o fim da Espanha — marca o seu ingresso num novo ciclo, em que a palavra substitui o canhão, o ensaio substitui o decreto, e a poesia torna-se o novo império. A Hispanidade, renascida das cinzas, descobre-se como comunidade espiritual fundada na língua, no sofrimento e na memória. E como nos versos de Darío — “Juventud, divino tesoro” —, essa língua rejuvenesce em meio à dor, e canta, e filosofa, e sonha, porque sabe que foi feita para algo mais que a posse: foi feita para a glória da expressão.
Assim, o século XX hispânico começa sob o signo da perda, mas também sob o da esperança. Numa época em que os impérios caíam, a língua espanhola se ergueu como último baluarte de uma missão que não era mais geográfica, mas metafísica. Através de Darío, Unamuno e Ortega, o mundo hispânico reencontrou não apenas sua voz, mas sua vocação. E talvez, como diria o próprio Unamuno, essa vocação seja simplesmente a de persistir: seguir falando, mesmo quando tudo parece ter sido calado.
Mas toda ressurreição exige fidelidade. E no caso da Hispanidade, essa fidelidade não é à forma morta do império, nem à rigidez de uma gramática inerte, mas àquilo que a alma espanhola foi capaz de conceber como experiência universal: a linguagem como drama, como dádiva, como encruzilhada entre o humano e o transcendente. Após a crise de 1898, não se tratava apenas de salvar a Espanha; tratava-se de salvar o espírito que ela, apesar de todos os seus erros, soubera plasmar no verbo — esse verbo que percorreu oceanos, que se amalgamou com línguas ameríndias, com memórias africanas, com silêncios filipinos, e que se ergueu, no fim, como o grande tecido onde a dor e a esperança se entrelaçam.
Os ecos desse ressurgimento espiritual não se limitaram à Europa e à América hispânica. A renovação operada por Darío, Unamuno e Ortega y Gasset inaugurou um novo itinerário, que seria trilhado, com variações e agonias, por gerações posteriores. García Lorca, com sua fusão de tradição popular e vanguarda trágica, tornou-se a encarnação lírica de uma Espanha dilacerada pela guerra civil, mas ainda vibrante de beleza e compaixão. Octavio Paz, herdeiro crítico da modernidade e poeta da pluralidade, levaria ao extremo a tensão entre o barroco e o vazio, entre a memória e a dissolução, propondo uma metafísica da linguagem que também é uma metafísica da identidade.
Na segunda metade do século XX, a Hispanidade já não era mais projeto imperial, nem sequer proposta política. Era, antes, uma condição espiritual, um espaço interior de resistência simbólica diante das homogeneizações do mundo moderno. Era o idioma — esse milagre de sopros e fonemas — que mantinha vivo o vínculo. E não um idioma como produto de mercado ou signo de consumo cultural, mas como instrumento de revelação do real, como forma de sabedoria popular e filosófica, como estrato poético e metafísico.
A língua espanhola, por isso, não morreu com o império. Ao contrário: libertou-se. Libertou-se das amarras da conquista, da gramática colonial, do dogma ilustrado, e passou a pertencer — com suas contradições, com seus regionalismos, com suas inflexões líricas — ao povo que a fala e reinventa. Em Buenos Aires ou em Bogotá, em Sevilha ou em San Juan, o espanhol tornou-se território de travessia, lugar onde o passado é lembrado não para ser repetido, mas para ser redimido. A língua transformou-se no verdadeiro palácio da memória ibero-americana, e dentro desse palácio ecoam, em salas distintas, os cantos de Darío, as súplicas de Unamuno, as análises de Ortega.
Hoje, a Hispanidade, como conceito cultural, não está isenta de controvérsias — e talvez nunca esteja. É natural que em tempos de revisão histórica e justiça epistêmica, o legado do mundo hispânico seja objeto de crítica e reavaliação. Mas o que permanece, irredutível, é o vigor da língua. A vitalidade com que ela ainda nomeia o amor e a angústia, o pão e a solidão, a justiça e o mistério. A língua espanhola — com seu fulgor barroco, sua clareza aristotélica, sua melodia natural — continua sendo o palco onde os povos de fala hispânica dramatizam sua existência.
E se é verdade que nenhuma cultura renasce por decreto, também é verdade que nenhuma morre enquanto houver palavra. Rubén Darío havia intuído que o esplendor do idioma salvaria a dignidade do espírito. Unamuno, que o pensamento nascido do coração restauraria a Espanha caída. Ortega, que a consciência histórica e estilística da vida abriria horizontes para além da mesmice. Nenhum deles se iludiu com glórias militares: foram soldados da linguagem. E por isso venceram.
Pois ao fim, a Hispanidade não é um mapa. É um timbre. Um modo de narrar a existência com dor e beleza, com desilusão e esperança. É uma pátria verbal feita de ecos, de palácios sonoros, de vinhedos e desertos, de místicos e amantes, de paisagens cruzadas por Cervantes, Teresa, Sor Juana, Machado, Borges. Uma pátria que renasceu de seu próprio desastre — não pela força, mas pela poesia.
E talvez resida aí o milagre hispânico: ter sido capaz de transformar o fim em origem, o silêncio em voz, a perda em cântico. Em cada palavra dita em espanhol, há o rumor de uma queda e a centelha de um ressurgimento. É essa centelha — sutil, antiga e sempre nova — que continua a iluminar, no vasto mundo da língua, a chama ainda viva da Hispanidade.
Por Helida Faria Lima.
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