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O Legado da Escola de Salamanca e os Direitos dos Povos Originários

  • 18 de jul.
  • 5 min de leitura

No fulcro da encruzilhada histórica que marcou o início da modernidade ibero-americana, a Escola de Salamanca se ergue como um dos faróis intelectuais mais luminosos e influentes na gênese do pensamento jurídico e filosófico que viria a orientar, de modo pioneiro e inquieto, os debates sobre a dignidade, a liberdade e a propriedade dos povos originários do Novo Mundo. Essa escola, que floresceu no século XVI, no cenário tumultuado das descobertas, conquistas e consequentes controvérsias morais e políticas, constitui uma síntese brilhante da teologia escolástica, do direito natural e da filosofia política renascentista, projetando uma luz crítica sobre as práticas coloniais que buscavam legitimar a dominação e a exploração. Os teólogos e juristas que dela emergiram, tais como Bartolomé de las Casas, Francisco Suárez e Melchor Cano, mergulharam profundamente na complexidade do direito natural, desvinculando-o de interpretações puramente dogmáticas e abrindo caminho para uma reflexão ética que reconhecia os povos indígenas como titulares de direitos intrínsecos, inalienáveis e universais, mesmo quando confrontados com a maquinaria imperial europeia que se lançava para subjugá-los. Esta contribuição intelectual não apenas contestou as estruturas jurídicas do período, mas inscreveu-se como uma das fundações históricas para a emergência das modernas concepções de direitos humanos e do direito internacional, especialmente no que concerne à soberania, à liberdade e à propriedade, desafiando, assim, a visão hegemônica da colonização como um processo incontestável de imposição e controle.


Bartolomé de las Casas emerge nesse panorama não apenas como um crítico feroz das atrocidades cometidas contra os povos indígenas, mas como um verdadeiro renovador da teologia moral e da doutrina jurídica cristã, que buscou reorientar o olhar do cristianismo para a plena humanidade e dignidade do “outro” americano. Dominicano e homem de profunda fé, Las Casas rompeu com o ethos dominante da época que naturalizava a escravização e a expropriação dos indígenas, propondo uma reinterpretação radical da igualdade ontológica entre todos os seres humanos, fundada na criação divina e na lei natural, que, para ele, constituem as bases universais da justiça. Seu ativismo — expresso em escritos como “Brevísima relación de la destrucción de las Indias” — não foi apenas um apelo humanitário, mas uma argumentação jurídica e moral estruturada, que enfrentou as políticas coloniais e culminou na defesa das Leyes Nuevas de 1542, as quais procuraram frear o abuso e garantir direitos mínimos aos indígenas. A reflexão de Las Casas transcende a mera denúncia das violências, configurando-se como um projeto de reforma ética do mundo colonial, onde a liberdade é concebida não como privilégio concedido, mas como atributo fundamental da natureza humana, e onde a propriedade dos indígenas é reconhecida como legítima e inviolável, contestando frontalmente as bases jurídicas da conquista e do domínio.


No diálogo rigoroso e filosófico com as questões centrais da justiça e da legitimidade do poder político, Francisco Suárez desenvolve uma teoria sofisticada do direito natural que se destaca como um dos pilares da moderna filosofia jurídica, e que lança luz sobre a condição jurídica dos povos originários nas Américas. Suárez não se limita à teologia; sua obra transcende o escolasticismo tradicional para formular uma sistematização do direito que integra racionalidade, liberdade e moralidade, reconhecendo nos indígenas não meros objetos de dominação, mas sujeitos plenos de direitos naturais, incluindo o direito à propriedade territorial e à autodeterminação. Para Suárez, a soberania dos reis espanhóis, longe de ser absoluta, encontra limites claros na justiça natural, de modo que o poder político deve respeitar os direitos inalienáveis dos indígenas, cuja terra e liberdade não podem ser usurpadas arbitrariamente. Suárez, com sua erudição jurídica, contribuiu decisivamente para a fundação do direito internacional, especialmente em temas como o direito dos povos à autodeterminação e a legítima defesa contra injustiças, abrindo, assim, brechas importantes para a crítica ao colonialismo e para a afirmação da dignidade indígena em um contexto dominado pelo eurocentrismo. Sua reflexão representa, portanto, um contraponto indispensável à narrativa da conquista, ao propor uma ética política fundada na justiça e no reconhecimento da alteridade.


Melchor Cano, brilhante teólogo e figura central da Escola de Salamanca, aprofunda ainda mais a discussão ao desenvolver a doutrina da justiça que legitima a resistência contra a tirania e a opressão, posicionando-se a favor da defesa ativa dos povos originários frente às injustiças da colonização. Cano insere sua reflexão na tradição tomista, enfatizando a supremacia da lei divina e da justiça natural como critérios supremos para o exercício legítimo do poder político. Ele sustenta que nenhum governante ou colonizador pode se arrogar autoridade que viole os direitos fundamentais de seus governados, pois a autoridade só é legítima quando orientada pelo bem comum e pelo respeito à liberdade e dignidade humanas. Essa doutrina não apenas oferece uma fundamentação teórica para a resistência indígena e a crítica aos abusos coloniais, mas também alimenta os embriões das modernas teorias contratuais do Estado e dos direitos humanos, ao estabelecer limites éticos e jurídicos para a soberania. O pensamento de Cano revela, assim, uma tensão vital entre o direito positivo colonial e os princípios universais da justiça, insistindo na responsabilidade moral e jurídica dos colonizadores diante dos povos originários.


O conjunto dos teólogos da justiça da Escola de Salamanca constrói, portanto, uma reflexão ética-jurídica que desafia o absolutismo colonial e promove um paradigma de direito natural que transcende as fronteiras culturais e temporais, configurando-se como precursora das modernas concepções de direitos humanos e direito internacional humanitário. Embora não isenta de contradições inerentes ao seu contexto histórico, essa tradição escolástica questiona as práticas coloniais que negavam o reconhecimento pleno da humanidade indígena e propõe um sistema jurídico moral que busca preservar a dignidade, a liberdade e a propriedade como direitos universais. Essas vozes, às vezes marginalizadas na história oficial, delineiam um horizonte ético em que a justiça e a moralidade são instrumentos de resistência contra a violência da conquista, abrindo caminho para a reinvenção da soberania e para o reconhecimento da pluralidade cultural no seio do sistema jurídico global. O legado da Escola de Salamanca, assim, não se limita a uma erudição acadêmica, mas encarna um testemunho ético e político que continua a desafiar as estruturas contemporâneas, exigindo a revalorização e o respeito pelos direitos dos povos originários como uma tarefa ainda urgente e necessária.


Revisitar esse legado é, portanto, mais do que um exercício historiográfico: é um chamado à responsabilidade ética e jurídica na contemporaneidade, onde os princípios formulados há quase cinco séculos pelo pensamento salmantino ressoam nas lutas atuais por autodeterminação, reconhecimento cultural e justiça social dos povos indígenas. Essa herança, permeada por uma profunda reflexão sobre a dignidade humana e a justiça universal, sublinha que a defesa dos direitos originários não é um anacronismo ou uma concessão benevolente, mas uma exigência radicalmente enraizada na tradição moral e jurídica ocidental, cuja modernidade não pode prescindir da pluralidade e do respeito às diferenças culturais. A Escola de Salamanca, com suas figuras centrais e seu vigoroso debate teológico-jurídico, torna-se assim uma fonte inesgotável de inspiração e crítica, capaz de iluminar os desafios contemporâneos da justiça intercultural e do direito internacional, reafirmando a dignidade inalienável dos povos originários como pedra angular da verdadeira universalidade do direito e da humanidade.


Por Helida Faria Lima.

 
 
 

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