“Le cœur a ses raisons que la raison ne connaît point.”("O coração tem razões que a própria razão desconhece.") — Blaise Pascal, Pensées
- 18 de jul.
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“Le cœur a ses raisons que la raison ne connaît point.” — assim escreveu Blaise Pascal em suas Pensées, erguendo com poucas palavras um dos mais belos abismos do pensamento ocidental. Abismo porque não é apenas a distância entre dois polos — o coração e a razão — mas a insuspeita profundidade que se abre quando se descobre que um fala línguas que o outro jamais aprenderá. No coração pulsa algo que não pode ser convertido em silogismo; há nele uma gramática que se recusa ao compasso da lógica cartesiana, e que, ainda assim, conhece. Conhece no escuro, no entrelace da fé, da emoção e do mistério. Conhece com uma lucidez que não se curva ao método, mas à revelação.
Pascal, matemático brilhante e físico precoce, não ignorava o esplendor da razão. Ele próprio contribuiu com teoremas que ainda sustentam pilares do conhecimento científico. Mas quanto mais avançava em suas equações, mais se deparava com uma insuficiência. A razão, mesmo em sua forma mais sublime, não salva. Ela explica, prevê, organiza; mas não consola, não perdoa, não ama. É por isso que o coração — esse outro centro do homem — ergue-se como protagonista da experiência religiosa, do amor, do arrependimento, da esperança. O coração, neste contexto pascaliano, não é mero depositário de emoções. É órgão de conhecimento. Conhecimento outro, não dedutivo, mas intuitivo. Não progressivo, mas súbito. Não demonstrável, mas vivido.
A tradição cristã compreende bem essa hierarquia dos saberes. Santo Agostinho já dizia que é preciso crer para compreender, e não o contrário. Pascal retoma essa tensão e lhe dá nova forma, mais incisiva, pois nascida da era moderna, da experiência de uma racionalidade triunfante que, no entanto, já sente o gosto amargo do desamparo. O coração, nesse horizonte, é a resistência da alma ao mundo que se fecha em sistemas. É nele que Deus escreve, quando a lógica se cala. É ele que se inclina, trêmulo, diante do sofrimento alheio, mesmo quando nada pode ser resolvido. É ele que conhece as lágrimas do arrependimento, o êxtase da adoração, o absurdo do amor gratuito. Todas essas realidades são verdadeiras — talvez mais verdadeiras que qualquer equação — e, no entanto, não se deixam reduzir ao raciocínio puro.
Pascal viveu entre os extremos. Foi homem de ciência e homem de fé, como se a existência fosse uma corda esticada sobre o abismo entre razão e coração. E foi nesse fio que ele dançou, com temor e tremor, ao modo de Kierkegaard, outro grande intérprete do paradoxo. A famosa aposta pascaliana, mal compreendida por muitos, não é um cálculo frio, mas uma súplica do coração ao espírito cético. Não se trata de subornar a razão, mas de indicar que mesmo a razão, em sua altivez, não pode escapar do risco. Toda escolha é uma aposta. E a fé, que nasce no coração, é a única aposta que, mesmo sendo irracional, faz sentido diante do absurdo da morte e do infinito.
“Le cœur a ses raisons...” — o eco dessa frase reverbera não apenas na teologia, mas também na literatura, na filosofia, na arte. Madame de Staël, em sua leitura romântica da sensibilidade, vislumbrou esse saber do coração como fonte de verdade estética. Rousseau, na vertigem de sua confissão, confiou mais ao coração do que à razão sua autobiografia. Dostoiévski, em cada página, ergue o coração como palco do drama humano, onde Deus e o diabo travam batalhas não com argumentos, mas com suspiros, sangue e orações. E ainda hoje, quando enfrentamos os enigmas da existência — a morte de um ente querido, o nascimento de um filho, o silêncio de Deus, o perdão que não entendemos como damos — é do coração, e não da razão, que brota o saber necessário.
A modernidade, embriagada de racionalismo, tentou deslegitimar esse saber. Inventou-se uma neutralidade objetiva, um homem autônomo, um discurso desprovido de emoção. E, no entanto, quanto mais se exaltou a razão, mais ela revelou seu vazio diante do que realmente importa. Como explicar racionalmente a beleza de uma música de Bach, o arrepio diante de um pôr-do-sol, a coragem de uma mãe que perdoa o assassino do filho? Como justificar, segundo as categorias da lógica, o dom da vida, o desejo de eternidade, o amor a quem nos traiu? A razão recua, e o coração avança. Não porque seja irracional, mas porque transcende o racional. Ele vê com os olhos fechados, escuta no silêncio, ama sem garantias.
A teologia cristã jamais foi inimiga da razão. Tomás de Aquino, por exemplo, levou o raciocínio ao mais alto grau na tentativa de dizer algo de Deus. Mas mesmo ele, no fim da vida, após uma experiência mística, calou-se. “Tudo o que escrevi me parece palha”, disse. A razão, enfim, se curva. Não por falência, mas por reverência. Porque há razões maiores — razões do coração — que iluminam aquilo que o intelecto apenas vislumbra de longe. O mistério, no cristianismo, não é uma ignorância a ser vencida, mas uma presença a ser adorada. E só o coração é capaz de adorá-la plenamente.
Pascal sabia disso. Sua vida inteira foi uma peregrinação interior, uma tensão entre o rigor das ciências e a entrega do espírito. Seu encontro com Deus foi registrado em um fragmento encontrado costurado em seu casaco: “Deus de Abraão, Deus de Isaque, Deus de Jacó, não dos filósofos e dos sábios. Certeza. Certeza. Sentimento. Alegria. Paz.” Nesse bilhete tremem todas as razões do coração. E o verbo-chave não é “provar”, mas “sentir”. Uma certeza sentida, não demonstrada; uma paz que não vem da coerência, mas da confiança. Fé, não como salto no escuro, mas como visão por outra luz.
Por isso, Pascal é contemporâneo dos que ainda ousam crer. Dos que sabem que o amor não se explica, que a oração não é cálculo, que o sentido da vida não se resume a fórmulas. Ele fala à alma sedenta, ao intelectual em crise, ao poeta ferido, ao cético em busca de repouso. Sua frase — “o coração tem razões que a razão desconhece” — é um convite ao mergulho. Um chamado à humildade diante do indecifrável. Um lembrete de que somos mais vastos do que nossa lógica, mais profundos do que nossas teorias, mais humanos quando amamos do que quando compreendemos.
No fim, talvez seja isso: o coração conhece porque ama. E amar é conhecer sem possuir. É contemplar sem dissecar. É permanecer junto mesmo sem entender. Deus, segundo Pascal, é conhecido assim: com os joelhos dobrados, com o peito aberto, com o coração exposto. E é nesse conhecimento que a verdadeira razão reencontra sua origem — pois a sabedoria não está no argumento, mas no reconhecimento. Reconhecer que há um Bem maior, um Amor maior, uma Verdade maior. E que tudo isso não cabe na razão, mas cabe no coração.
Por Helida Faria Lima.
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