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“Je suis le néant qui pense.”("Sou o nada que pensa.") — Victor Hugo, Les Contemplations

  • 18 de jul.
  • 5 min de leitura

No fundo da noite da alma, quando todo ruído se cala e os pensamentos ganham o eco sepulcral das grandes catedrais abandonadas, Victor Hugo sussurra com a força de um trovão invertido: Je suis le néant qui pense. Sou o nada que pensa — fórmula pavorosa e luminosa, que resume não apenas uma condição existencial, mas a própria tessitura do ser no universo hugoliano. Ali onde o poeta vê o abismo, há também uma janela aberta para o infinito; ali onde sente a vertigem do nada, pulsa uma febre de eternidade. Nessa breve sentença, o que se desdobra não é uma simples visão melancólica da existência, mas uma escavação abissal da consciência humana diante de Deus, da morte, do tempo — e, sobretudo, da própria potência do espírito.


Victor Hugo, em Les Contemplations, não é apenas o bardo das dores humanas, nem apenas o vate dos humilhados e ofendidos, mas um teólogo da sombra, um metafísico das lágrimas, um profeta do silêncio estrelado. Ele escreve como quem ora com as mãos cobertas de terra — ora o lodo do túmulo, ora o húmus fecundo da criação. Em sua pena, o homem é ao mesmo tempo poeira e verbo, espectro e centelha. Le néant qui pense — o nada que, em contradição viva, pensa. E que, pensando, cria. E que, criando, se eleva acima do caos do qual nasceu.


A frase é brutal. E por isso mesmo, bela. Porque o que há de mais belo no humano é sua capacidade de dizer o indizível — de pensar apesar do nada. Hugo contempla o nada, mas não se deixa consumir por ele. Ele o habita como quem pisa em ruínas para reconstruir templos. Pois para Hugo, a poesia é a ascese do pó: o sopro do Espírito que visita as ossadas do vale seco, como em Ezequiel, e diz vivam. O poeta é aquele que, do fundo de seu próprio esvaziamento, ousa pensar. Ousadia que é prece, que é revolta, que é arte — e que é salvação.


Ao proclamar-se o “nada que pensa”, Hugo ecoa, à sua maneira, as angústias do cogito cartesiano, mas também o pavor ontológico de Pascal diante do “silêncio eterno desses espaços infinitos”. O que Descartes fez com a razão — isto é, erigi-la como certeza primeira, mesmo cercada de dúvida —, Hugo faz com a angústia: mesmo sendo o nada, penso. Mesmo sendo pó, percebo. Mesmo mergulhado no escuro, vejo. Não há consolo fácil aqui; há, porém, um heroísmo metafísico: o pensamento, que em outros poetas é ferramenta, em Hugo é milagre.


É preciso não esquecer que Les Contemplations nasce da dor: a morte de Léopoldine, filha adorada do poeta, afogada aos dezenove anos, é o estopim da escrita, o luto tornado obra. Se a poesia é a transfiguração da dor, Hugo o faz como quem escreve com sangue sobre a pedra. Je suis le néant qui pense é, nesse contexto, uma oração dita entre soluços, um hino que sobe como incenso de um altar em ruínas. Pois que outro nome se dá ao pai que perdeu a filha senão “nada que pensa”? Um nada ferido, que não se extingue — mas contempla. Contempla o passado, o tempo que escorre, as sombras dos que partem, o silêncio de Deus, o rumor do além. E pensa. O pensamento, aqui, não é apenas uma função mental, mas uma forma de resistência: pensar para não sucumbir. Pensar para não morrer mais do que já se morreu.


Na tradição ocidental, o nada sempre foi uma presença espectral. Em Parmênides, era o inominável. Em Plotino, o resíduo do múltiplo. Em Tomás de Aquino, a ausência do ser. Em Heidegger, o fundo oculto da angústia. Mas é no romantismo — e em Hugo em particular — que o nada se torna personagem. Um eu que fala desde o abismo. Um eu que, ao invés de negar o nada, o assume como vestimenta e trono. O nada, aqui, não é o fim, mas o começo. Pois o homem só começa verdadeiramente quando se reconhece como precipício. Antes disso, é vaidade. Depois disso, é oração.


Mas o que pensa o nada, afinal? Pensa Deus. Não como conclusão lógica, mas como clamor desesperado. Hugo não constrói silogismos teológicos; ele canta em agonia. E, no entanto, sua teologia é robusta, tão sólida quanto uma catedral gótica. Deus, para ele, não é um conceito, mas um interlocutor — ora ausente, ora terrivelmente presente. Deus é aquele a quem o poeta grita nos desertos do tempo. É a única resposta possível ao nada. E, ao mesmo tempo, seu mistério mais agudo. Pois se o homem é o nada que pensa, Deus é o tudo que cala.


Talvez seja esse o grande mistério da poesia hugoliana: ela parte do nada, mas não se contenta com ele. Ela habita a treva, mas busca a luz. É gótica, sim — mas também apocalíptica, no sentido joanino do termo: espera pela revelação. Entre a lágrima e o trovão, entre o túmulo e a estrela, Hugo escreve. E, escrevendo, redime. A palavra, para ele, é sacramento. Não no sentido dogmático, mas no mais alto sentido litúrgico: a palavra como meio de graça, como gesto de reconciliação entre o homem e o tempo, entre o homem e o absoluto, entre o homem e si mesmo.


Na frase “sou o nada que pensa”, há também um eco trágico do mito de Prometeu. O poeta é aquele que ousa pensar mesmo quando tudo em volta se despedaça. É o que se ergue sobre o vazio e o transforma em cântico. O que se recusa a ser devorado pela morte, mesmo sabendo que ela é inevitável. Pois a poesia é, em última instância, um rito fúnebre que se recusa a enterrar o sentido. É uma vela acesa no corredor escuro da existência.


É possível ver também, nesse verso, uma antecipação do existencialismo. Sartre diria que “a existência precede a essência”, Camus que “o homem é a criatura absurda que busca sentido onde só há silêncio”. Hugo, mais antigo que eles, já intuíra esse desamparo — mas o revestira de fé. O nada, em Hugo, não é a última palavra. É a condição inicial da oração. É a treva de Gênesis antes do fiat lux. Pois se o homem é o nada que pensa, então ele é também o berço da criação. Um berço doente, mas fecundo.


A vastidão trágica e mística de Hugo não é, portanto, apenas estética: é espiritual. Ele escreve como quem contempla não apenas as estrelas, mas os interstícios do ser. Cada poema é uma escada de Jacó lançada entre o pó e o alto. E ao dizer-se “nada”, ele não se aniquila — ele se prepara. Porque só quem sabe que é pó pode desejar ardentemente o sopro. Só quem reconhece o abismo pode clamar pelo céu.


Je suis le néant qui pense. Um verso. Uma queda. Uma ascensão. O humano em sua miséria mais grandiosa. O poeta em sua nudez mais santa. E o nada — esse companheiro sombrio — finalmente reconciliado, porque fez-se pensamento. Pensamento que ora, que canta, que resiste. Pensamento que ama. Pensamento que, no limite, é a forma mais delicada de eternidade que nos é permitida.


Por Helida Faria Lima.

 
 
 

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