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“Je est un autre.”("Eu é um outro.") — Arthur Rimbaud, Lettre du voyant

  • 18 de jul.
  • 5 min de leitura

“Je est un autre.” — esta curta sentença de Arthur Rimbaud, lançada como um raio na carta conhecida como Lettre du voyant (1871), permanece até hoje como uma das expressões mais radicais e desconcertantes da modernidade literária. Com ela, o jovem poeta não apenas rompe com a tradição lírica que o precedia, mas desestabiliza toda uma concepção de sujeito que sustentava não só a literatura, mas a própria filosofia ocidental. O eu, que desde Descartes fora o fundamento da certeza — “Cogito, ergo sum” —, torna-se agora outro, um estranho, um espectro que fala por meio de mim, mas não é idêntico a mim. A poesia, a partir de Rimbaud, deixa de ser expressão do íntimo para tornar-se exílio do eu. O poeta é um médium, não um mestre. É tomado por visões, mas não é o autor delas no sentido pleno. Ele escreve porque vê, mas vê porque se ausenta.


A revolução rimbaudiana reside nesse movimento paradoxal de despossessão. O poeta se vê descentrado, dissolvido, entregue às forças de um outro que fala nele — ou que se serve dele como instrumento. Essa dissolução do sujeito, no entanto, não deve ser confundida com uma simples negação da identidade, mas com uma transfiguração dela. O eu não desaparece: ele se torna múltiplo, plural, móvel. O “eu” de Rimbaud é um campo de intensidades, um teatro de vozes. Ele é o palco e o ator, mas também a plateia. Vê-se em cena, mas não se reconhece. Sente, mas não se possui. Como nas tragédias antigas, a consciência não é dona da palavra, é apenas seu veículo transitório.


A frase “Je est un autre” emerge no contexto de uma correspondência que pretende justificar o papel do poeta como voyant, vidente. O poeta, diz Rimbaud, deve “fazer-se vidente por um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos”. Tal desregramento, longe de ser apenas devassidão ou delírio, é uma via de iluminação, um método ascético às avessas, um batismo pelas trevas. Para ver, é preciso deixar de ser. O poeta se exaure, se anula, para que algo outro — o absolutamente outro — possa surgir. É uma mística sem Deus, uma possessão sem demônio, uma lucidez envenenada. Nesse estado, o eu é uma ruína iluminada, e a linguagem, uma aparição entre os escombros.


Esse deslocamento radical do sujeito tem ecos profundos na literatura posterior. Mallarmé, ao afirmar que “o mundo existe para chegar a um livro”, consagra a literatura como uma realidade autônoma, separada da subjetividade do autor. O poema não é o reflexo da alma, mas um objeto em si, uma máquina de sentido. Com os simbolistas, o eu já não canta suas dores: ele se oculta, se fragmenta, se dissolve na música das palavras. Com os surrealistas, o inconsciente passa a ser a verdadeira fonte da criação — uma instância que, como o “outro” de Rimbaud, fala por trás do espelho, abrindo fissuras na identidade.


Mas é talvez em Fernando Pessoa que a frase rimbaudiana encontra sua mais esplêndida ressonância. Quando o poeta português afirma: “O poeta é um fingidor”, ele não quer dizer que o poeta mente, mas que ele cria verdades através da mentira consciente, da multiplicação dos eus.


Pessoa não tem uma voz, mas muitas. Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro — esses heterônimos não são máscaras: são almas plenas, autônomas, dotadas de estilo, pensamento e vida próprios. O “eu” pessoano é um espelho estilhaçado, cujos fragmentos refletem mundos diversos. O poeta, tal como em Rimbaud, é uma ausência ativa, um vácuo fecundo, um centro em constante fuga.

“Je est un autre” também pode ser lida como uma antecipação do pensamento pós-estruturalista, especialmente da desconstrução do sujeito operada por filósofos como Foucault, Derrida e Deleuze.


Para Foucault, o autor é uma função discursiva, não uma entidade psicológica. Para Derrida, o sujeito está sempre atrasado em relação ao sentido, que escapa incessantemente. Para Deleuze, o eu é um nó de devenires, um fluxo atravessado por forças que o ultrapassam. Em todos esses pensadores, o “eu” é um efeito, não uma causa. Rimbaud, com sua lucidez profética, já intuía isso. Seu “eu” é um campo de atravessamentos, uma superfície onde se inscrevem vozes, desejos, traumas, delírios — tudo aquilo que não pode ser contido pela noção de identidade.


Na psicanálise, esse mesmo descentramento do sujeito será tematizado por Lacan, que reformula o cogito cartesiano como “penso onde não sou, sou onde não penso”. O inconsciente, estruturado como uma linguagem, fala em nós sem que tenhamos domínio sobre ele. Assim como em Rimbaud, o eu é falado antes de falar. Ele é outro porque é dividido, cindido entre o desejo e a lei, entre o imaginário e o simbólico. A frase “Je est un autre” se converte, nesse contexto, numa chave para a compreensão do sujeito moderno como ausência de si, como falta constitutiva.


Mas seria um erro limitar essa máxima a seus desdobramentos teóricos. Há nela também uma dimensão poética e metafísica profunda: a consciência de que ser é estar fora de si. O outro não é apenas o estrangeiro, mas o próprio dentro de mim que desconheço. O amor, por exemplo, é uma forma de expropriação do eu — amamos quando nos perdemos no outro, quando somos mais do que éramos ao acolher uma alteridade. A arte, do mesmo modo, só é possível porque nos arranca de nossa clausura. Criar é hospedar aquilo que não somos, é deixar-nos atravessar por uma presença que nos excede.


Nesse sentido, “Je est un autre” é também um apelo à humildade radical. Não somos donos de nossa fala, nem de nossa história. Somos falados, escritos, movidos. A identidade é uma ficção necessária, mas uma ficção ainda assim. Viver é continuamente nos tornarmos outros. É por isso que os grandes escritores são sempre múltiplos: Kafka, com seu eu que se transmuta em inseto; Clarice Lispector, com sua consciência vertiginosa e sua mística da alteridade; Borges, com seus espelhos, labirintos e heterônimos disfarçados. Todos parecem escrever sob o signo de Rimbaud, todos ouvem esse outro que fala por entre as dobras da linguagem.


Rimbaud, é verdade, abandonou a poesia ainda jovem, como se, tendo olhado por demais o abismo do outro, não suportasse mais a vertigem. Tornou-se comerciante, explorador, aventureiro. Calou-se. Mas seu silêncio não apagou o incêndio que provocou. Pelo contrário: o fez mais intenso. Pois sua sentença permanece. “Je est un autre” continua a nos assombrar, a nos seduzir, a nos lembrar de que a verdadeira literatura começa quando o eu deixa de ser centro e se torna enigma. Quando o poema não é espelho, mas abismo. Quando escrever é, antes de tudo, escutar.


E talvez seja justamente aí que reside o milagre da arte: nesse ponto em que deixamos de querer dizer e passamos a querer ouvir. Nesse ponto em que o eu se cala para que outro fale. A poesia, afinal, não é a voz de um ego triunfante, mas o eco de uma ausência, a vibração de um outro que nos habita sem jamais se deixar capturar. Rimbaud compreendeu isso antes de todos. E por isso sua frase — tão breve, tão luminosa, tão devastadora — permanece. Como uma estrela morta que ainda brilha. Como uma verdade que ainda queima. Como um outro em nós, que jamais nos deixa sós.


Por Helida Faria Lima.

 
 
 
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