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Inovações e Tradições na Música Cristã Brasileira, Uma Entrevista com Vencedores por Cristo

  • 5 de jul. de 2024
  • 10 min de leitura

Fundado em 1968 por Jaime Kemp, o grupo Vencedores por Cristo se destaca por sua natureza diplomática e humilde, enriquecida pela maturidade e sensibilidade proporcionadas pela graça de Deus. Ao longo de décadas, têm introduzido inovações na música cristã contemporânea brasileira, mantendo um vínculo respeitoso com a tradição religiosa. Com habilidade e delicadeza, têm desafiado paradigmas estabelecidos, dedicando suas realizações à glória de Deus.



Até a década de 1960, os protestantes brasileiros cantavam apenas as músicas de seus tradicionais hinários (como harpas e afins), sendo composições anteriores ao século XIX. Consoante a isto, nas décadas de 70, 80 e 90, vocês foram pioneiros na composição de músicas cristãs contemporâneas que tinham como ritmo o rock and roll, bossa nova, marcha, dentre outros. E como vocês lidaram com a receptividade, inicialmente defensiva, do público evangélico brasileiro?

Uassyr Verotti: Bom, quando o Jaime veio para cá, ele trouxe várias partituras do Ralph Carmichael. Ralph Carmichael era um maestro americano que começou a desenvolver nos Estados Unidos um estilo musical mais jovem, distanciando-se dos ritmos tradicionais. Esses ritmos de Ralph Carmichael eram mais ousados do que os corinhos que se cantavam no Brasil. O início foi muito conturbado, pois, apesar de o grupo Vencedores por Cristo ter uma formação coral de 22 a 26 pessoas, a música era mais jovem, atraindo muitos jovens. Isso deve ter causado um grande problema para a igreja, pois havia uma nova música bíblica com um ritmo ao qual não estavam acostumados. Alguns pastores que passaram pelo grupo Vencedores por Cristo, muitos deles seminaristas do Palavra da Vida e do Seminário Presbiteriano, começaram a assumir igrejas e a assimilar essa nova música, introduzindo-a nas congregações que estavam começando a pastorear. No entanto, o início foi conturbado, pois tudo que é novo causa uma certa resistência. Algumas igrejas, especialmente das Assembleias de Deus, eram mais relutantes. A introdução de instrumentos como a bateria, por exemplo, foi uma dificuldade, e até hoje ainda é em algumas igrejas. Mas, aos poucos, com simpatia e muito amor, o grupo Vencedores por Cristo foi conquistando seu espaço.


Em 1977, fora lançado o álbum "De Vento em Popa", sendo o primeiro disco com todas as músicas compostas por autores nacionais como Sérgio Pimenta, Aristeu Pires, Guilherme Kerr, Edy Chagas e Artur Mendes, explorando ritmos genuinamente brasileiros como bossa nova e samba-canção. Como a banda enxerga esta obra tão autêntica?

Uassyr Verotti: A primeira marca do "De Vento em Popa" é a transição das músicas americanas traduzidas, inicialmente trazidas por Jamie Camp, para as composições dos primeiros missionários brasileiros, como Guilherme Kerr. Esse momento representou a primeira mudança significativa da missão musical americana para a brasileira, com compositores locais como Sérgio Pimenta e Alice Teo, entre outros mencionados. Foi um impacto importante, pois os últimos missionários americanos deram lugar à música brasileira, que até então era vista como música secular, incluindo MPB, rock, e outros gêneros. Esse processo de adaptação foi essencial para que o grupo "Vencedores por Cristo" e a igreja pudessem assimilar e incorporar essas novas influências.


Lucitânia Verotti: "De Vento em Popa" foi lançado praticamente na época em que me converti. Eu sou mineira de Belo Horizonte e, ao chegar na igreja, vim de um lar onde meu pai sempre tocava música brasileira, especialmente samba. Fui criada nesse ambiente. Quando me converti e cheguei à igreja, antes mesmo da minha conversão, vi aquela congregação cantando um tipo de música que eu não acreditava que existia no meio evangélico. Até então, tudo que eu conhecia era muito tradicional e, de certa forma, atrasado. Ver a igreja cantando músicas como as do "De Vento em Popa", com canções como "A Roseira" e a Janice cantando "Tira tua alma do deserto, sozinho não pode ser ninguém, deixa Cristo chegar mais perto", foi um grande impacto para mim. Naquela época, o conjunto da minha igreja cantava músicas do grupo "Vencedores por Cristo" e eu fiquei encantada. Eu não conhecia essas músicas, fui descobrindo-as aos poucos, começando pelas traduções. Quando esse LP foi lançado, trouxe muita dificuldade e resistência no início. Muitas pessoas não compraram imediatamente, pois era algo muito moderno e diferente. No entanto, essa transição foi extremamente importante, pois destacou compositores brasileiros que, até hoje, continuam a influenciar a música gospel. Alguns desses compositores já estão com o Senhor, mas outros ainda fazem história. Esse álbum continua impactando pessoas. O Alexandre, com a banda, recebe muitos pedidos para cantar essas músicas. Embora o repertório dos "Vencedores por Cristo" seja muito vasto e seja difícil tocar todas as músicas, eles fazem questão de dar uma nova roupagem a essas canções do passado, relembrando esses clássicos. Esse LP teve um impacto significativo em todo o Brasil.



Alexandre Abreu: De fato, a virada de chave ocorreu com essa ruptura do estilo americanizado, que iniciou o projeto para uma linguagem mais brasileira nos arranjos. Alguns até dizem que os "Vencedores por Cristo" eram o Chico Buarque do gospel e da MPB, devido à complexidade e sofisticação de suas músicas. Esse foi um momento de verdadeira ruptura, marcado pela impressão de uma nova identidade, trazendo brasilidade às composições. Procuramos zelar por essa característica até os dias de hoje, mantendo o estilo brasileiro e o conteúdo inspirado na palavra de Deus. A mistura da poesia com essa brasilidade resulta em um diferencial que continua a marcar a sonoridade do ministério até os dias atuais.


Vocês também revolucionaram no uso de instrumentos musicais. Utilizavam desde os clássicos piano e órgão até os populares violão, baixo elétrico, guitarra, bateria etc. E muitos destes instrumentos, como a bateria, eram mal-vistos por algumas igrejas protestantes e vocês tiveram uma participação de fundamental destaque na quebra desse paradigma. Como definiriam este período?

Uassyr Verotti: Se houvesse uma palavra para definir essa trajetória, seria "serviço", pois os "Vencedores por Cristo" prestavam um serviço à Igreja Evangélica. O objetivo do grupo sempre foi atender às necessidades da igreja, oferecendo suporte. A área da música é especialmente complicada, e até hoje, Alexandre pode falar sobre isso, já que eles têm viajado pelo Brasil e realizado workshops de música para grupos de louvor, onde surgem diversas questões. Foi um processo de serviço, chegando e ensinando o porquê da bateria, dos instrumentos. Devemos muito aos missionários que passaram pela missão e tiveram a paciência e o amor de explicar sem impor, sem agredir. Em várias programações dos "Vencedores por Cristo", a bateria tinha que ficar do lado de fora ou atrás de um vaso para não escandalizar ninguém. Mas, com o tempo, essas barreiras foram quebradas e as coisas começaram a ser aceitas. Graças a Deus, hoje temos um ambiente mais acolhedor e compreensivo.


Lucitânia Verotti: Algumas igrejas não aceitavam bateria, então fazíamos as programações sem bateria. Nunca confrontamos a igreja diretamente. Se uma igreja exigia saias longas, nós usávamos saias longas sem problemas. "Vencedores por Cristo" nunca viu isso como uma barreira; o objetivo sempre foi chegar na igreja e somar, nunca dividir. Para nós, o relacionamento e o conteúdo estão acima da música. É crucial que o grupo ajude e apoie as pessoas, e não crie divisões. Por exemplo, houve uma ocasião em Portugal, onde algumas igrejas eram muito tradicionais. Naquela época, muitos jovens usavam rabinho de cavalo. Sem hesitação, um dos nossos músicos cobriu o cabelo com um gorro por causa do frio, evitando qualquer controvérsia. Fazemos de tudo para não sermos uma pedra de tropeço para a igreja, sempre procurando respeitar e adaptar-nos às suas normas e necessidades.


Alexandre Abreu: A flexibilidade é muito positiva nesse sentido. Nunca tentamos impor as coisas de maneira rígida. Quando chegamos a uma igreja, nosso objetivo é conhecer o cenário e somar. Por exemplo, algumas igrejas são mais tradicionais e não batem palmas. Sempre perguntamos antes de ministrar, mesmo que os convites geralmente venham com base no trabalho que já realizamos. Com a internet, todos podem ver como estamos hoje e avaliar se somos adequados para a sua igreja. Sempre temos a sensibilidade de perguntar se a igreja bate palmas. Se não, respeitamos essa preferência. Às vezes, durante o louvor, a igreja se envolve de forma natural, levantando-se e batendo palmas espontaneamente. Sempre respeitamos essas sensibilidades, como quando não é permitido usar bateria. Usamos cajón ou apenas violão e voz. Nosso objetivo é sempre abençoar, nunca criar divisão. Essa abordagem nos ajudou a conquistar respeito e espaço nas igrejas. Hoje em dia, há muitas variações de ministérios e estilos musicais. As igrejas têm dúvidas sobre quem chamar, mas "Vencedores por Cristo" é sinônimo de respeito, equilíbrio e uma composição litúrgica adequada. Tudo isso contribui para a nossa trajetória e para a forma como conquistamos a igreja brasileira, com nosso jeito de ser e de fazer música dentro da igreja.


O grupo também era cuidadoso com seu vocal. Com vários vocalistas, a banda apresentava tipicamente em suas músicas arranjos em quatro vozes, composto por baixo, tenor, contralto e soprano... Como a banda equilibrou a inovação musical com a preservação dos valores e temas tradicionais da música cristã brasileira ao longo das décadas de 70, 80 e 90?

Alexandre Abreu: No início, "Vencedores por Cristo" tinha uma formação quase coral, com muitas pessoas. Conforme o tempo passou e a música foi se modernizando e sofisticando, passamos por um processo adaptativo. Reduzimos o tamanho do grupo para torná-lo mais acessível e compatível com os tempos atuais. A formação foi mudando, deixando de ser um grupo enorme e se tornando mais compacta. Hoje, em 2024, estamos na nonagésima primeira formação, composta por cinco integrantes. Já tivemos formações com até sete membros, mas nos adaptamos para tornar a banda menos onerosa para as igrejas, considerando custos de transporte, alimentação e hospedagem.

Com a tecnologia e os recursos disponíveis hoje, conseguimos moldar nossa sonoridade para ficar mais próxima das gravações. Usamos VS (Virtual Sound), que são pré-produções disparadas durante as apresentações ao vivo, enriquecendo os arranjos e permitindo uma sonoridade mais completa, mesmo com um grupo reduzido. No aspecto vocal, trabalhamos muito nas harmonias, geralmente com tríades em três vozes. Marquinhos, por exemplo, às vezes segura no contralto, eu faço o tenor e a Nataly na melodia. Essa flexibilidade e a afinidade desenvolvida ao longo do tempo permitem que ajustemos os arranjos conforme necessário, dependendo da tonalidade e do estilo da música. Essa abordagem nos permite executar músicas antigas com uma nova roupagem, mantendo sua beleza e arte, mas sem descaracterizá-las completamente. O repertório de "Vencedores por Cristo" é atemporal. Atualizamos os arranjos das músicas antigas para torná-las mais contemporâneas, o que agrada tanto os antigos fãs quanto os novos ouvintes. Os pais que foram alcançados por nossa música no passado agora veem seus filhos sendo tocados por essas versões atualizadas. Essa transmissão de legado de geração em geração tem sido muito gratificante, e as respostas que recebemos são muito positivas. As pessoas apreciam a nossa capacidade de contextualizar a música sem perder sua essência, mantendo vivo o legado dos "Vencedores por Cristo".


E se tratando de membros, vocês passam por diversas mudanças desde 1968. É certo que o grupo contou com variadas formações, já tendo lançado mais de quarenta álbuns. Como mantém a qualidade em termos de sonoridade e composição mesmo diante das transições de integrantes?

Lucitânia Verotti: Desde que comecei a gravar com os "Vencedores por Cristo", primeiro sem ser missionária e depois assumindo como missionária, estive envolvida na produção, organizando CDs. A escolha das músicas não é feita de uma hora para outra. Temos uma equipe que avalia as letras para ver se elas se alinham com o tema do CD e com as necessidades do público que queremos atingir. Por exemplo, já gravamos discos mais evangelísticos e, nesse caso, evitamos músicas de adoração. O CD mais recente, "Louvando", foca em adoração, então procuramos mesclar conteúdo, ritmo, e escolher cuidadosamente quem faz os arranjos e quem canta. Nos "Vencedores por Cristo", sempre procuramos manter um padrão alto na escolha das músicas. Elas precisam ser bíblicas, relevantes para o público alvo e de alta qualidade em termos de letra, arranjo e musicalidade. Outra característica importante dos "Vencedores" é o discipulado. Quando entrei pela primeira vez em uma gravação, estava acompanhada por alguém mais experiente. Aprendi muito com essas pessoas e, à medida que fui ganhando experiência, pude orientar e apoiar os mais novos. Esse processo de aprendizado mútuo é fundamental. O que eu não dominava, outros me ensinavam, e, mais tarde, quando eu tinha mais experiência, ajudava os novos integrantes nas áreas em que tinham dificuldade.


Uassyr Verotti: A escolha do repertório é realmente desafiadora, pois envolve combinar a música com o arranjo, os músicos, o estilo musical e a ideia do projeto. Graças a Deus, contamos com muitos talentos excepcionais em nosso meio, pessoas que compartilham o propósito dos "Vencedores por Cristo". Os arranjadores que trabalham conosco têm a sensibilidade de entender como os "Vencedores" operam e adaptam seus estilos e ideias ao nosso contexto. É um trabalho conjunto e de parceria, onde vários ingredientes se combinam para resultar em algo especial. Desde a escolha das músicas até a direção geral do projeto, cada elemento contribui para o sucesso final. A integração da música, dos arranjos e dos participantes é fundamental para alcançarmos nossos objetivos e impactarmos positivamente aqueles que nos ouvem.


Alexandre Abreu: É muito verdade tudo isso que a Lucitânia compartilhou sobre como os mais experientes influenciam os menos experientes. Eu sou um exemplo disso, e se hoje estou na direção, foi porque me inspirei muito na própria Lucitânia, na Ângela e no Cláudio. Tivemos uma formação que durou quase 11 anos desde o início, quando eu tinha 18 anos. Naquela época, eu falava pouco e me concentrava em cumprir minha função, mas observava muito. Isso foi fundamental para minha formação pessoal e como músico e cantor. Sempre busquei estudar canto, participei de seminários e me esforcei pela excelência. Lembro-me vividamente do meu primeiro dia de gravação, entrando no estúdio com o João Alexandre dirigindo uma canção. Minha perna tremia mais que vara verde, pois sempre admirei João Alexandre e de repente ele estava lá, guiando a sessão e oferecendo orientações, mesmo sendo inicialmente o solista. Ele decidiu que o solo seria meu na música "Convite", uma bela peça para celebração, realizando assim um sonho e proporcionando um aprendizado valioso. Cada projeto que realizamos é guiado por perguntas como qual o objetivo, qual o foco - seja para marcar uma fase de nossa formação, seja para um repertório congregacional ou algo mais artístico. Atualmente, retomamos as gravações do Louvor 11, uma série que sempre visou conduzir a congregação à adoração através de músicas de fácil assimilação e conteúdo teológico profundo, mantendo acessibilidade e excelência musical. Estamos lançando as músicas uma a uma, permitindo ao público participar do processo criativo e gerando expectativa para o lançamento completo do álbum.



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Grupo e Banda Vencedores por Cristo em julho de 1968


Vencedores por Cristo transcenderam o cenário da música cristã brasileira. Com uma abordagem que incorpora a poesia e a musicalidade, eles não apenas revolucionaram, mas criaram uma nova forma de expressão que ressoa com autenticidade, paixão e fé. Suas composições não só louvam, mas também refletem a diversidade e a riqueza das influências musicais do Brasil, oferecendo uma conexão profunda entre fé e identidade nacional.

Entrevistados: Alexandre Abreu (vocalista da banda), Uassyr Verotti e Lucitânia Verotti (missionários e ex-integrantes da banda). | Entrevistadora: Helida Faria Lima. | Data: 05/07/2024.


 
 
 

1 comentário


Membro desconhecido
05 de jul. de 2024

Excelente entrevista! Feliz em saber que a banda segue firme nas apresentações em igrejas e também gravando músicas. É uma banda que marca mais de uma geração com excelentes letras e melodias. Que Deus os abençoe nessa jornada.

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