“Il n’y a qu’un bonheur dans la vie, c’est d’aimer et d’être aimé.”("Só há uma felicidade na vida: amar e ser amado.") — George Sand
- 18 de jul.
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Há frases que não se escrevem com a mão, mas com a alma inteira. “Il n’y a qu’un bonheur dans la vie, c’est d’aimer et d’être aimé” é uma dessas, saída do coração de George Sand como uma confidência ao mundo — não como tese, mas como sopro, quase como um murmúrio que sobrevive ao barulho das teorias e dos ceticismos. Porque há verdades que são tão simples que se tornam escandalosas. E entre todas elas, talvez nenhuma seja tão provocante quanto a de que a única felicidade na vida reside no amor, nesse duplo milagre de amar e ser amado.
No século XIX, quando Sand escreveu, o romantismo não era apenas um movimento literário, mas uma disposição do espírito. Amava-se como quem respira, sofria-se como quem escreve, e a alma era sempre maior do que o corpo que a continha. O amor, nessa constelação de sensibilidades, não era um mero afeto, mas uma metafísica — um modo de ser no mundo. Ainda que sob a capa de ilusões e melancolias, havia nele uma intuição ontológica: o ser humano não foi feito para a solidão absoluta, tampouco para o egoísmo isolado. Nas páginas de Sand, como nas de Musset, Chateaubriand, Lamartine ou Victor Hugo, o amor era o campo onde se jogava a mais séria das experiências humanas: a do encontro, da reciprocidade, da fusão que não anula, mas exalta.
Essa ideia, tão antiga quanto a própria humanidade, encontra ecos em todas as mitologias. Platão, no "Banquete", nos conta da origem do amor como busca de completude — a célebre lenda dos andróginos, seres originalmente inteiros, divididos por Zeus e condenados a procurar sua outra metade. Essa narrativa, entre mítica e filosófica, já anunciava a verdade que George Sand iria mais tarde proclamar com doçura inabalável: não há felicidade fora da comunhão. O amor é aquilo que nos restitui ao que nunca fomos, mas sempre desejamos ser — inteiros, vistos, acolhidos.
Na psicanálise, Freud tentou dissecar o amor como transferência e projeção de desejos inconscientes. Lacan, com sua habitual ousadia, afirmou que “amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer”. E, no entanto, por mais que a modernidade tenha tentado reduzir o amor a sintomas, impulsos ou estratégias de sobrevivência psíquica, ele escapa. Escapa como névoa entre os dedos do racionalismo, como perfume de carta antiga, como nome escrito na margem de um livro escolar. A frase de George Sand não se curva à lógica clínica nem à suspeita pós-moderna: ela insiste na ternura como eixo da vida, na reciprocidade como condição de plenitude.
Amar — esse verbo simples que a língua tenta conter — é mais do que afeto, é mais do que encantamento. É um gesto metafísico. É a entrega que se arrisca, que se desnuda, que se faz vulnerável. Não há amor sem vulnerabilidade, pois o amor exige uma abertura radical à alteridade, uma disposição de ser atravessado pelo outro, de se deixar modificar por ele. E ser amado, por sua vez, é uma experiência quase sacramental: é saber-se escolhido, desejado, acolhido na inteireza e na ferida. Simone Weil dizia que “o amor verdadeiro é olhar para alguém e dizer: tu não morrerás”. Essa é a profundidade de ser amado: é sentir-se, mesmo que por instantes, salvo do aniquilamento.
Não se trata aqui de idealizações adolescentes, mas de uma sabedoria que nasce do próprio coração humano — e de sua insuficiência. Ninguém é suficiente para si mesmo, e isso não é fraqueza: é constituição. Por isso, quando George Sand escreve que só há uma felicidade, e que esta reside no amar e ser amado, ela não está ignorando a complexidade da vida, nem negando o sofrimento que frequentemente acompanha o amor. Ela está dizendo que, apesar de tudo, e talvez por causa de tudo, amar continua a ser o que dá sentido às horas, o que inscreve beleza no efêmero.
Na literatura, os maiores personagens não são os mais heroicos, mas os que mais amaram. Madame Bovary, por mais trágica que seja, é comovente porque amou; Anna Karenina, porque se perdeu no amor; Werther, porque amou demais para suportar o mundo. E mesmo Dom Quixote, em sua loucura, amava Dulcineia com um fervor que o tornava nobre — pois amava não apenas uma mulher, mas a própria ideia de um bem inalcançável. O amor, nos romances, é sempre o princípio ativo da transformação, da perda, da esperança. Sem ele, o drama se torna simples relato, e a personagem, apenas figura. É o amor que dá densidade à ficção — e à vida.
Nas teologias cristãs, o amor é mais do que um sentimento: é substância de Deus. “Deus é amor”, diz João em sua epístola, não como metáfora, mas como definição. E Agostinho, tão marcado pela sua própria peregrinação afetiva, escreveria nas "Confissões": “Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei”. Amar, para Agostinho, era reencontrar-se com o próprio princípio. E ser amado por Deus era o ápice da alegria humana, a fonte de toda segurança e toda cura.
O mundo moderno, entretanto, teme o amor. Busca-o e teme-o. De um lado, o idolatra nos filmes, nas músicas, nas redes sociais; de outro, o desconfia, o ridiculariza, o banaliza. A cultura do desempenho nos ensinou a amar com reservas, a entregar com cálculo, a proteger o eu a qualquer custo. Mas o amor verdadeiro é tudo o que o mercado e o narcisismo não suportam: é desproporcional, é inútil no sentido econômico, é gratuito e devotado. É aquilo que se faz mesmo quando não convém, quando dói, quando desafia o orgulho. Por isso, tantas vezes, o amor é confundido com fraqueza. Mas só os fortes amam de verdade — porque só os fortes se arriscam.
Amar e ser amado: talvez seja esse o núcleo indestrutível da nossa vocação humana. Os que amaram de fato sabem disso — não com os lábios, mas com a memória. Sabem que não há bem maior do que deitar a cabeça no ombro de alguém que nos conhece e, ainda assim, nos quer. Sabem que não há glória mais alta do que olhar alguém com desejo, reverência e ternura ao mesmo tempo. E que ser olhado assim é ser, por um instante, liberto da morte. Há um instante em que, ao sermos amados, cessamos de nos justificar: simplesmente somos. E é nesse instante que se toca a felicidade.
A frase de George Sand não é um consolo, é um destino. Ela não serve para amenizar os desamores, mas para lembrar o que realmente vale. Amar e ser amado é aquilo que permanece quando todas as conquistas passam, quando os troféus se cobrem de poeira, quando o corpo envelhece e a fama se dissolve. É o que resta quando tudo o mais é esquecido. É o único gesto que, mesmo sem aplausos, continua eterno.
Talvez, afinal, todo o resto — a arte, a filosofia, a política, a ciência — seja apenas a moldura de uma única imagem essencial: dois seres humanos que se olham com verdade, e que sabem, ainda que sem palavras, que estão em casa um no outro. Tudo fora disso é ausência, exílio, sobrevivência. Porque só há uma felicidade na vida: amar e ser amado. O resto é espera.
Por Helida Faria Lima.
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