Estética da Dúvida e do Êxtase: A Dramaturgia Litúrgica da Hispanidade
- 18 de jul.
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Na penumbra fulgurante das catedrais barrocas, entre o incenso que sobe como oferenda invisível e o tilintar dos sinos que ferem o ar com solenidade, ergue-se uma dramaturgia que não é apenas arte, mas teologia encenada. A hispanidade, em sua longa tessitura de impérios e conversões, de sangue e ouro, de verbo e silêncio, consolidou uma das mais sublimes expressões da fusão entre o sagrado e o estético: os autos sacramentales, o drama sacro e a festa barroca. Entre a dúvida e o êxtase, entre o terror do abismo e a vertigem da graça, a América Hispânica encontrou nos palcos da devoção uma forma de constituir sua alma e seu imaginário.
O auto sacramental, esse gênero dramatúrgico singular, é filho dileto da Contra-Reforma e da genialidade espanhola. Tomando como matriz as formas medievais do mistério e da moralidade, ele se purifica, por assim dizer, nos crivos tridentinos, para tornar-se instrumento de catequese doutrinal e de exaltação eucarística. Calderón de la Barca, príncipe dessa arte, transforma a hóstia em sol dramático, em torno do qual giram símbolos, alegorias, virtudes e vícios, em combate permanente pelo espírito humano. Seus autos — como El gran teatro del mundo, La cena del Rey Baltasar ou El divino Orfeo — são verdadeiros retábulos em movimento, onde a dúvida racional se dissolve em visões de glória, e o intelecto se curva ao mistério.
A estética do auto sacramental é barroca em essência: dramatiza o invisível, arquiteta o incompreensível, celebra a tensão entre a razão e o milagre. Por meio de suas alegorias, ele traduz em figura a complexidade da doutrina católica, sobretudo a transubstanciação e o papel central da Eucaristia na vida cristã. Ao encenar o dogma, o auto sacramental reconfigura a percepção sensorial do espectador — que já não assiste apenas, mas participa. E, no contexto da América Hispânica, onde o drama sacro é transplantado com força missionária, essa forma teatral torna-se ferramenta de evangelização e instrumento de reordenamento simbólico das cosmologias indígenas.
A festa barroca, por sua vez, funciona como extensão sensível dessa liturgia dramatizada. Mais do que simples celebração popular, ela constitui um espaço de reencantamento do tempo. Com seus tapetes floridos, procissões coreografadas, estandartes de prata e imagens de olhos de vidro, as festas da Corpus Christi ou da Assunção não são apenas demonstrações de fé: são, também, pedagogia visual e teatral do catolicismo. São os “autos do povo”, nos quais a rua torna-se nave, e o palco, altar. Em cidades coloniais como Ouro Preto, Cuzco, Puebla ou Quito, a festa barroca realiza o milagre da fusão entre o drama sacro europeu e as expressões rituais ameríndias, em uma sinfonia onde o Êxtase fala em todas as línguas.
Nesse processo, o drama sacro penetrou também o espaço da evangelização jesuítica. Nas reduções do Paraguai e da Bolívia, missionários formaram coros, orquestras e companhias teatrais compostas por indígenas guaranis e chiquitanos. Essas encenações, muitas vezes em línguas locais, adaptavam os modelos espanhóis para uma gramática visual compreensível pelos neófitos: as parábolas tornavam-se cenas, os salmos tornavam-se cânticos, e as paixões de Cristo ganhavam cores, sons e gestos inspirados na cultura nativa. Aqui, a dúvida da razão ocidental encontrava o êxtase sensorial do mundo ameríndio — e o resultado era uma liturgia encarnada, de rara beleza e potência formativa.
Importa notar que a dramaturgia litúrgica da hispanidade não é mero apêndice cultural da fé: ela é um dos modos pelos quais o catolicismo ibérico encarnou-se nas terras do Novo Mundo, estabelecendo não apenas dogmas, mas afetos, imagens e ritmos espirituais. Como dizia Octavio Paz, “o barroco é uma contraofensiva espiritual”: diante da fragmentação do mundo e do avanço do racionalismo, a cultura hispânica responde com um excesso de forma, um horror ao vazio, uma necessidade de converter a teologia em poesia, a doutrina em imagem, o dogma em espetáculo. E essa operação estética não exclui a dúvida — ao contrário, a abraça. No barroco hispânico, o crente é, antes de tudo, um ser dilacerado entre a carne e a graça, entre o mundo e a eternidade.
A estética da dúvida se revela, por exemplo, na figura do hombre barroco, esse sujeito teatral que ora rasteja em arrependimento, ora se exalta em visões místicas. Ele é, como nos versos de Quevedo, um ser “polvo enamorado de la nada”. Na dramaturgia sacra, tal figura adquire contornos dramáticos agudos: o pecador que hesita, o convertido que cai, o mártir que teme. A liturgia, encenada, não esconde a dor da fé, mas a exibe — como São João da Cruz, que, na sua Subida ao Monte Carmelo, vê na escuridão da alma um prelúdio do esplendor divino. A dúvida torna-se, assim, condição do êxtase: é porque o homem está cindido que ele pode ser redimido; é porque ele sofre a ausência que experimenta a presença com assombro.
Tal dinâmica estética, rica em paradoxo, faz com que a dramaturgia litúrgica da América Hispânica seja um campo de expressão e construção identitária. Ela forja uma sensibilidade específica, na qual o tempo litúrgico ordena o tempo cotidiano, e a linguagem da fé se infiltra nas estruturas do imaginário coletivo. Até mesmo a linguagem cotidiana se impregna da teatralidade sacra: expressões como pasión, milagro, redención ou pecado extravasam o templo e moldam a retórica civil. Como mostrou Américo Castro, a língua espanhola — saturada de neologismos teológicos desde o século XVI — tornou-se, na América, um idioma encarnado, em que o drama da salvação ecoa até nas falas mais banais.
Esse fenômeno não se dá sem tensões. A imposição do drama sacro e da estética barroca sobre os mundos indígenas implicou também apagamentos, censuras, reconfigurações. Muitos dos mitos ameríndios foram reprimidos ou transfigurados, ocultos sob mantos de santos e mártires. Mas tampouco se trata de uma substituição simples. A liturgia encenada da hispanidade americana é, antes, um palimpsesto: sob os autos sacramentales, pulsa a memória das danças solares, dos rituais agrícolas, dos cantos para os mortos. A teatralidade católica se alimentou desses substratos — e ao fazer isso, criou uma forma nova de dramaturgia, onde o Êxtase cristão se entrelaça com a sacralidade indígena do mundo.
Em última instância, a dramaturgia litúrgica da hispanidade não é apenas um produto da história cultural do barroco. Ela é uma forma de epistemologia sensível, uma maneira de conhecer o invisível por meio do sensório, de interrogar o mistério através do gesto. Ao encenar o sacrifício, a ascese, a conversão e a glória, o teatro sacro hispano-americano constrói um saber do corpo, uma teologia da presença, uma estética da fé. Nele, a dúvida não é eliminada — é encenada. O Êxtase não é prematuro — é conquistado no abismo da incerteza.
E talvez seja esse, afinal, o maior legado dessa tradição: ter nos ensinado que a fé não é um sistema fechado, mas um drama em aberto, onde o homem, no palco da história, representa o eterno. Que Deus, quando encarnado, não desdenha o teatro — antes o assume. Que a beleza não é ornamento, mas expressão da verdade. E que, na América Hispânica, o barroco não é um estilo: é uma forma de alma.
Por Helida Faria Lima.
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