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A Música Barroca Hispano-americana e a Evangelização Sonora: Liturgias do Som, Coros do Espírito e a Harmonia dos Povos Redimidos

  • 18 de jul.
  • 5 min de leitura

Sob o retábulo dourado da história colonial, onde se entrelaçam o poder, a fé e a arte, ergue-se uma sinfonia singular: a música barroca hispano-americana. Nela, o Verbo se fez som, e o Evangelho ressoou não apenas em palavras, mas em harmonias sacras, contrapontos celestes, vozes mestiças. A América não foi apenas evangelizada com a palavra escrita nos púlpitos; foi também convertida pelo ouvido, por uma evangelização sonora que transmutava a liturgia em espetáculo sensorial, e a catequese em encantamento harmônico. A música barroca, como linguagem de eloquência mística e aparato de comoção espiritual, foi um dos instrumentos mais poderosos da missionação católica no Novo Mundo.


A imensidão do império hispânico — de Cuzco a Puebla, de Quito a Córdoba — foi entrelaçada por uma rede de catedrais e missões, onde os sons do Antigo Mundo eram reelaborados pelas mãos e vozes do Novo. A música sacra, especialmente no período barroco (c. 1600-1750), tornou-se não apenas meio de glorificação divina, mas um delicado, profundo e engenhoso meio de conversão cultural e espiritual. Ao lado da espada e do incenso, o órgão e o salmo tornaram-se ferramentas missionárias. A música foi o espelho sonoro da Monarquia Católica, irradiando seu projeto teológico-político através da beleza e da ordem polifônica. Como dizia São Francisco Xavier: “Uma alma convertida por uma canção, permanece mais tempo no seio da fé do que aquela que apenas escutou uma exortação.”


No coração das cidades coloniais, as grandes catedrais se erigiam como centros de produção musical. Seus coros — verdadeiras academias sonoras — abrigavam capelas musicais compostas por mestres de capela, cantores, organistas, ministriles (instrumentistas) e coristas jovens que se iniciavam desde a infância no universo da música litúrgica. A Catedral de Puebla, por exemplo, floresceu sob a direção do célebre compositor Juan Gutiérrez de Padilla (c. 1590–1664), cuja obra polifônica ecoava tanto os ecos de Palestrina como os murmúrios das florestas do México. Padilla soube amalgamar com maestria as tradições ibéricas com os timbres do mundo indígena e africano, criando um barroco vibrante e inconfundivelmente americano.


Essas catedrais não apenas reproduziam os modelos metropolitanos, mas também se tornavam centros de inovação, sincretismo e formação musical. Os coros não eram apenas lugares de louvor: eram também espaços de alfabetização musical, socialização cristã e mestiçagem estética. Jovens indígenas, mestiços e africanos eram formados nesses ambientes como meninos de coro, aprendendo cantochão, contraponto, notação mensural e técnica vocal — tornando-se, alguns deles, compositores de excelência.


A evangelização sonora não se limitava, porém, ao espaço urbano e episcopal. Nas profundezas do continente, onde o catecismo ainda não chegara em tinta e pergaminho, os jesuítas levaram o Evangelho em clave musical. As missões da Companhia de Jesus — sobretudo no Paraguai, na Bolívia e no norte da Argentina — tornaram-se celeiros de uma musicalidade sacra singular, onde o barroco europeu foi traduzido, reinventado e encarnado pelas mãos indígenas. Ali, o som era o véu da Graça.


As famosas Reduções Jesuíticas dos Guaranis, por exemplo, são testemunhos sublimes dessa liturgia musical da conversão. Combinando piedade e pedagogia, os padres ensinaram aos indígenas a construir instrumentos — cravos, órgãos, violas da gamba —, a ler partituras, a compor em estilo concertato, a entoar polifonias e responsórios com refinamento digno de qualquer catedral europeia. A música, para os jesuítas, era método, meio e mensagem. Ela educava os afetos, disciplinava os corpos, elevava as almas — e, sobretudo, transfigurava os sons da terra em vozes do Céu. “Cantare Deo cum cithara nova in lingua guaranítica”, teria dito algum padre-mestre ao contemplar o coro indígena entoando o Magnificat em sol maior.


Com efeito, os próprios indígenas não foram meros receptores passivos dessa transmissão sonora. Ao contrário: apropriaram-se dos códigos barrocos e, com criatividade e engenho, produziram obras de notável beleza. Mestres como Tomás de Torrejón y Velasco (ativo em Lima), Gaspar Fernandes (em Oaxaca) e até o mestiço Juan de Araujo, mestre de capela em La Plata (atual Sucre), trabalharam lado a lado com músicos indígenas, criando partituras em que o latim litúrgico convivia com línguas nativas, e os ritmos do villancico espanhol se entrelaçavam com os batuques e as danças americanas.


Os villancicos, aliás, merecem destaque. Essa forma musical híbrida, festiva, devocional e muitas vezes popular, floresceu como expressão típica do barroco hispano-americano. Celebrando os santos, as festas marianas e o Natal, os villancicos incorporavam elementos teatrais e dialógicos, muitas vezes em dialetos africanos ou indígenas estilizados, compondo uma tapeçaria sonora de fé e festa. Alguns manuscritos de Oaxaca e do Peru preservam villancicos de negros, de indios, de mulatos, nos quais se percebe uma consciência artística do pluralismo cultural e espiritual da América. A música era também espelho da alma barroca: teatral, encenada, dialética, iluminada por contrastes.


Em muitos desses repertórios, o barroco americano se afasta da rigidez europeia e ganha calor, cor, movimento. A presença de percussões locais, de flautas nativas e de variações melódicas improvisadas dão a essa música um caráter de mestizaje, de barroco tropical e auroral, no qual a cruz não elimina o tambor, mas o consagra. A cruz musical do Novo Mundo é policromática.


Além disso, é nas partituras manuscritas, nos códices preservados em catedrais e missões, que se lê a crônica sonora da evangelização. Arquivos como os de Chiquitos e Moxos, redescobertos no século XX, revelam centenas de obras compostas ou copiadas por mestres indígenas — missas, salmos, ladainhas, motetos. Esses arquivos são mais do que vestígios artísticos: são testemunhos de um encontro profundo entre culturas sob a égide do mistério cristão. Neles, ressoa a voz dos povos que, pela música, encontraram um novo modo de rezar, de louvar, de existir. É uma arqueologia da alma americana.


Essa evangelização sonora teve também implicações teológicas. O barroco hispânico concebia a música como meio de exaltação da ordem divina. A harmonia das esferas — conceito herdado de Boécio e refinado por Tomás de Aquino — era vista como reflexo da ordem trinitária, e a música litúrgica como participação no louvor celeste. Assim, ensinar um indígena a cantar em polifonia era mais do que adestramento artístico: era introduzi-lo na ordem do cosmos cristão, no ordo amoris da fé católica.


Ao fim, não se pode compreender plenamente o barroco americano sem escutá-lo. Ele foi mais do que pintura e talha; foi som. A conversão da América foi, em parte, um concerto: padres como regentes, catecismos como partituras, povos indígenas como músicos e o Espírito como sopro vivificador. Se o barroco europeu sonhava com o theatrum mundi, o barroco hispano-americano encarnou um auditorium fidei, onde cada coral era um ato de fé, cada missa um drama sonoro da Redenção.


A evangelização sonora permanece como herança viva. Em cada coral indígena que canta em quechua uma missa andina; em cada reconstituição musicológica das missões jesuíticas; em cada coral boliviano que revive os manuscritos de Moxos, ou em cada órgão restaurado na catedral de Cuzco — ouve-se ainda o eco daquele projeto sublime: evangelizar com beleza, ensinar com música, salvar pelo canto. Pois como ensinava Santo Agostinho: “Quem canta, reza duas vezes.” E na América barroca, a oração era feita em clave de sol.


Por Helida Faria Lima.

 
 
 

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