A Lira Ardente da Queda: Milton e o Paraíso Irrecuperável
- 18 de jul.
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“To justify the ways of God to men” — assim principia o mais ousado intento da poesia inglesa: não apenas contar a queda do homem, mas vindicar os desígnios do Altíssimo diante da fragilidade humana. John Milton, o poeta cego e inflamado por uma teologia de ferro e um amor inextinguível pela liberdade, escreveu em Paradise Lost não um livro apenas, mas uma arquitetura verbal do universo moral. O épico protestante por excelência nasce do cruzamento entre a tempestade do Gênesis e o trovão de Homero, entre o lume da Reforma e o estilo augusto de Virgílio. Com ele, a língua inglesa torna-se um santuário da majestade divina e do drama humano; uma lira ardente que canta a soberania absoluta de Deus e o abismo terrível da vontade humana.
A obra não é apenas a narração de uma queda. Ela é a queda feita canto, é a história do Éden transfigurada em cosmogonia da dor e da graça. Tudo nela vibra ao compasso de uma grandeza perdida e de uma esperança prometida. Milton ergue, na cadência solene do verso branco, uma nova teologia narrativa: não há apenas personagens, mas princípios encarnados; não há apenas eventos, mas mitos vivos que sangram, relampejam, se revoltam e se prosternam. Adão e Eva, Satã e o Filho, os anjos fiéis e os rebeldes, todos compõem o drama de uma criação que respira — e geme — sob o peso glorioso da eleição e da justiça.
Milton é reformado até a medula, e sua teologia é sem concessões. Deus é o soberano inquestionável, eterno, imutável, cuja presciência não é predição passiva, mas o decreto eterno de tudo quanto há. Satã, no entanto, é descrito com uma vastidão trágica que não romantiza a rebelião, mas expõe o horror do orgulho insurgente. “Better to reign in Hell than serve in Heaven” — essa frase, arrancada do âmago do anjo decaído, ressoa como o epitáfio da autonomia humana diante do trono divino. Satã é fascinante, sim, mas é fascinante como um eclipse: belo, grandioso, mas destinado ao colapso e à escuridão. Milton não o absolve. Ele o revela.
Na teologia miltoniana, não há espaço para o acaso ou para o dualismo. Tudo é providência. O mal não surpreende a Deus. A queda é permitida — sim, e mais: ela é o teatro onde se mostrará a justiça e a misericórdia do Criador. A Queda, longe de ser o fim, é o início de outra história, mais gloriosa ainda: a da Redenção. A liberdade humana não é anulada; ela é real, mas limitada, sempre subordinada à vontade maior. Essa tensão — entre a responsabilidade do homem e a onipotência de Deus — é o pulso da narrativa. Milton não tenta resolvê-la com simplicidade; ele a canta, com gravidade bíblica e música profética.
O Éden de Milton é mais que um jardim — é um templo cósmico, um microcosmo do louvor, uma imagem da ordem e da paz que só a obediência pode manter. Quando Adão e Eva caem, não é apenas a perda de um local paradisíaco; é a perda de um estado ontológico. É o rompimento da aliança, a ruptura da harmonia entre o espírito e a criação. E, contudo, mesmo aqui, o poeta enxerga além do abismo. “Felix culpa,” dirá, à maneira dos Padres: “Oh feliz culpa, que nos trouxe tal Redentor!” A esperança irrompe como um sol escondido entre as nuvens. Há juízo, sim. Mas há também promessa.
A linguagem de Milton é, ela mesma, uma epopeia. Numa época em que o latim ainda era o idioma dos saberes, ele insiste na glória da língua inglesa — e não de qualquer inglês, mas de um inglês de estatura bíblica, entalhado em vocábulos arcaicos, inversões latinas e cadências quase litúrgicas. O verso branco, sem rima, mas com metro, adquire nele uma majestade que ecoa os Salmos e as tragédias antigas. É uma língua que se curva, mas não quebra; que sobe ao trono com Deus e desce ao inferno com os demônios. A linguagem de Milton é uma língua escatológica — ela vê o fim desde o princípio.
Na tradição épica, Homero canta o herói que retorna, Virgílio o império que nasce. Milton canta a obediência e a redenção. O herói não é Aquiles, mas o Filho de Deus, que voluntariamente se oferece ao sacrifício. O inimigo não é um exército, mas a soberba. A arma não é a espada, mas a fé. Nesse sentido, Paradise Lost não é apenas uma epopeia — é uma catequese poética, um Salmo reformado em dez cantos. O leitor não é apenas espectador; é convocado à adoração, à reflexão, ao temor e à esperança.
Milton era um homem do seu tempo e contra o seu tempo. Viveu na efervescência das guerras civis inglesas, lutou por um ideal de liberdade, mas sabia que a verdadeira liberdade só pode florescer sob a verdade de Deus. Seu republicanismo, embora político, era teológico: só é livre aquele que se submete ao Eterno. Sua cegueira física foi compensada por uma visão espiritual intensa, que lhe permitia ver o invisível — os anjos em batalha, o trono de Deus, o olhar do Tentador, a lágrima do homem. Milton escreveu no escuro, mas viu mais que todos.
Não há como ler Paradise Lost sem sentir a vastidão do mundo sendo reconfigurada: céu e inferno, tempo e eternidade, homem e Deus são recolocados em suas devidas proporções. O homem não é nada diante de Deus — e, contudo, é amado. A justiça é severa — e, contudo, a misericórdia triunfa. O Éden foi perdido — mas o Paraíso pode ser reconquistado, não pelas mãos humanas, mas pelo sangue do Cordeiro.
Assim, Milton encerra seu épico não com desespero, mas com dignidade e esperança. Adão e Eva, expulsos do jardim, partem pela mão da graça. “The world was all before them” — o mundo inteiro diante de si. Não mais o Éden, mas um novo horizonte, onde a redenção há de florescer como uma semente caída, enterrada e, enfim, ressuscitada.
Milton, esse Isaías inglês, não apenas cantou a Queda. Ele fez do Éden um espelho da alma, do verso uma oração, da poesia um púlpito. E, no fulgor ardente de sua pena, revelou que a queda é apenas o início de um cântico mais alto, mais puro, mais eterno.
Por Helida Faria Lima.

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